Imagine uma criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) que, ao ser exposta a uma situação aparentemente simples — como participar de uma roda de conversa, visitar um ambiente desconhecido ou até mesmo lidar com uma mudança mínima em sua rotina — entra em crise. Ela pode se isolar, repetir frases sem contexto, gritar, ou demonstrar sinais de profundo desconforto. À primeira vista, esses comportamentos podem ser interpretados como “birra”, “teimosia” ou “mania”, mas muitas vezes são manifestações de uma ansiedade intensa, expressa de forma não convencional.
Para os profissionais da saúde, reconhecer a ansiedade em indivíduos com TEA é um desafio que exige sensibilidade clínica, atualização constante e compreensão profunda da neurodiversidade. A expressão da ansiedade, nesses casos, não segue os moldes típicos descritos nos manuais diagnósticos — o sofrimento está lá, mas grita em silêncio.
Ansiedade no TEA: prevalente, mas invisível
As pesquisas científicas apontam que pessoas com autismo podem apresentar algum tipo de transtorno de ansiedade, tornando essa comorbidade uma das mais prevalentes no espectro. Os quadros mais comuns incluem:
- Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG): preocupação excessiva e persistente, mesmo sem motivo claro.
- Fobias específicas: medo intenso e desproporcional a estímulos como barulhos, animais, objetos ou situações cotidianas.
- Ansiedade Social: dificuldade acentuada em interações sociais, com medo de julgamentos ou rejeição.
- Transtorno do Pânico: crises súbitas de medo intenso, acompanhadas por sintomas físicos como taquicardia, sudorese e falta de ar.
- Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC): obsessões e compulsões que podem se confundir com padrões repetitivos do próprio TEA.
No entanto, em pessoas com TEA — especialmente aquelas com déficits na linguagem verbal — a manifestação desses quadros pode ser sutil ou completamente atípica. Alguns sinais comuns incluem:
- Aumento na frequência ou intensidade de comportamentos repetitivos.
- Irritabilidade ou agressividade súbita sem causa aparente.
- Evitação de interações ou locais específicos.
- Alterações alimentares ou no sono.
- Queixas somáticas (como dores) sem origem médica aparente.
- Episódios de autoagressão ou agitação extrema.
A ausência de recursos para nomear emoções e comunicar desconfortos faz com que a ansiedade, nesses contextos, se “disfarce” de outros sintomas. O risco, portanto, é que ela passe despercebida ou seja atribuída exclusivamente ao autismo.
Ferramentas e estratégias clínicas eficazes
Para atuar com precisão e empatia no manejo da ansiedade em indivíduos com TEA, é essencial utilizar recursos adaptados à realidade neurodivergente. Entre os principais, destacam-se:
Avaliação adequada:
- Instrumentos validados para TEA: como a Anxiety Scale for Children – Autism Spectrum Disorder (ASC-ASD)ou a Revised Children’s Anxiety and Depression Scale (RCADS), adaptada ao nível de cognição e linguagem do paciente.
- Entrevistas com cuidadores e observação clínica estruturada: fundamentais para captar mudanças comportamentais associadas à ansiedade.
Intervenções terapêuticas:
- Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) adaptada: protocolos específicos para TEA incluem maior uso de apoio visual, sessões mais curtas, treino de reconhecimento emocional e estratégias de enfrentamento concretas.
- Modelagem e dessensibilização sistemática: utilizadas para exposição gradual a situações ansiogênicas, sempre com reforço positivo e controle de estímulos.
Apoio familiar:
- Capacitar os pais e cuidadores com ferramentas para reconhecer sinais precoces de ansiedade e ajustar rotinas e ambientes.
- Criar planos de manejo em parceria com a família, baseados na previsibilidade, organização visual e redução de gatilhos.
Uso racional de psicofármacos:
- Em casos moderados a graves, pode ser indicado o uso de ansiolíticos ou antidepressivos (como ISRS), sempre com avaliação psiquiátrica especializada e monitoramento rigoroso de efeitos adversos.
Considerações importantes!
Desconsiderar a ansiedade em indivíduos com Transtorno do Espectro Autista é mais do que uma falha diagnóstica — é negligenciar uma dimensão essencial de seu bem-estar emocional. A ansiedade impacta diretamente o comportamento, a aprendizagem, o vínculo terapêutico e a qualidade de vida de toda a família.
Profissionais atentos às manifestações não convencionais da ansiedade no TEA conseguem oferecer um cuidado mais preciso, humanizado e eficaz. Isso exige, acima de tudo, escuta ativa, empatia clínica e disposição para enxergar além do comportamento visível.
Você tem olhado para além do diagnóstico? Quais ferramentas você tem usado para reconhecer sinais invisíveis de ansiedade?