A lacuna entre o saber e o fazer
Em um cenário cada vez mais orientado por evidências científicas, profissionais da saúde que atuam com o Transtorno do Espectro Autista (TEA) enfrentam um desafio frequente: como transformar o vasto conhecimento disponível na literatura científica em ações terapêuticas concretas, individualizadas e eficazes no cotidiano da clínica, da escola e da família?
Essa angústia não decorre da falta de interesse ou comprometimento profissional, mas de barreiras reais entre a teoria e a prática. Artigos muitas vezes estão disponíveis apenas em inglês técnico, os protocolos podem parecer distantes da realidade dos contextos brasileiros, e a sobrecarga de demandas clínicas limita o tempo disponível para estudo e atualização. Para muitos profissionais, a prática diária exige escolhas rápidas — nem sempre acompanhadas do respaldo teórico desejado.
Quando a ciência parece distante da realidade clínica
Mesmo profissionais experientes se deparam com dilemas clínicos que não são facilmente resolvidos apenas com leitura técnica. Qual intervenção priorizar em contextos com múltiplas comorbidades? Como adaptar estratégias a famílias com baixa escolaridade, poucos recursos ou fragilidades emocionais? Como manter a fidelidade a um protocolo sem desrespeitar a singularidade de cada criança?
Esse desafio se intensifica em contextos interdisciplinares. Psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, pedagogos e fisioterapeutas, entre outros, trazem diferentes formações, teorias e linguagens. Isso exige articulação, escuta ativa e clareza conceitual para que as intervenções sejam integradas, coerentes e centradas na pessoa atendida — e não fragmentadas ou contraditórias.
O papel da formação e do suporte institucional
A formação continuada, crítica e supervisionada é um dos caminhos mais potentes para reduzir essa lacuna. Cursos que articulam teoria e prática, estudos de caso, supervisão clínica e acesso a referências internacionais atualizadas são recursos valiosos — mas que muitas vezes ainda estão concentrados em grandes centros urbanos ou fora do alcance financeiro da maioria.
Nesse cenário, é essencial que instituições públicas e privadas apoiem o desenvolvimento técnico de suas equipes, garantindo acesso à formação, tempo protegido para estudo e incentivo à participação em congressos, grupos de estudo e espaços interdisciplinares de troca.
Além disso, a valorização de práticas colaborativas — como reuniões clínicas, rodas de discussão de casos e construção coletiva de planos terapêuticos — pode ser um diferencial para aproximar os profissionais da literatura científica, sem que isso seja uma tarefa solitária e exaustiva.
Caminhos possíveis: entre a técnica e a sensibilidade
Aplicar práticas baseadas em evidências não significa seguir scripts rígidos ou desconsiderar a escuta clínica. Pelo contrário, exige olhar apurado para dados, pesquisas e protocolos validados, mas também sensibilidade para adaptar estratégias ao contexto, à cultura e à singularidade de cada pessoa.
Nesse sentido, é possível — e necessário — aliar o rigor técnico com a criatividade, o embasamento com a escuta, o planejamento com a flexibilidade. A personalização do cuidado, longe de ser incompatível com a ciência, é um dos pilares das boas práticas em saúde. E isso vale especialmente para o atendimento a populações neurodivergentes, cujas necessidades são tão variadas quanto suas formas de ser no mundo.
Considerações importantes
A dor de sentir que a ciência está distante da prática clínica no atendimento a pessoas com TEA não é um sinal de incompetência — é uma expressão do compromisso ético com um cuidado qualificado. Esse incômodo revela profissionais atentos, que não se satisfazem com soluções prontas e desejam oferecer intervenções mais eficazes, personalizadas e humanizadas.
Transformar essa dor em potência exige coragem para questionar, humildade para aprender continuamente e abertura para o trabalho colaborativo. Significa buscar fontes confiáveis, investir em formação continuada, construir pontes entre disciplinas e manter um diálogo sensível com as famílias. Ao fazer isso, o profissional amplia sua escuta, fortalece seu raciocínio clínico e enriquece seu repertório técnico com intencionalidade e respeito às singularidades.
Mais do que aplicar técnicas, cuidar no campo do TEA é um exercício constante de articulação entre evidências científicas, ética relacional e contexto. Quando essa articulação se fortalece, a prática se torna mais eficaz — e a jornada terapêutica mais significativa para todos os envolvidos.
Se você também sente esse desafio, que tal compartilhar sua experiência com outros profissionais? Redes de troca e conhecimento podem transformar não apenas a prática, mas também o sentido do cuidado.