Do cuidado à autonomia: o papel da intervenção durante a transição para a vida independente de pessoas com TEA

A transição para a vida adulta e independente é uma etapa desafiadora para qualquer indivíduo. No entanto, quando se trata de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), esse processo exige uma atenção muito mais sensível, planejada e articulada. E é justamente nesse ponto que o papel do profissional de saúde se revela estratégico — não apenas como clínico, mas como facilitador de caminhos, promotor de autonomia e articulador de redes de suporte.

Historicamente, a trajetória da pessoa autista foi marcada por uma visão centrada no cuidado protetivo e tutelar, especialmente no contexto familiar. Esse modelo, embora motivado por afeto e proteção, muitas vezes limitou oportunidades de desenvolvimento da autonomia e reforçou uma dependência desnecessária. No entanto, o movimento da neurodiversidade e as demandas por inclusão vêm transformando essa lógica: hoje, cada vez mais adultos autistas reivindicam sua autonomia, seu direito à independência e seu espaço no mundo — ainda que com suporte.

O que significa “vida independente” no contexto do autismo?

A vida independente para pessoas com TEA não é sinônimo de viver sozinho, sem suporte. Trata-se, antes, da possibilidade de tomar decisões sobre a própria vida, exercer escolhas com base em suas capacidades e preferências, e viver com dignidade em ambientes que respeitem suas singularidades. Isso pode incluir morar sozinho, com apoio parcial, com colegas, ou mesmo com familiares — desde que esse arranjo respeite a autonomia e não seja fruto de exclusão ou falta de opções.

Onde entra o profissional de saúde?

O profissional de saúde — seja psicólogo, terapeuta ocupacional, psiquiatra, médico de família ou enfermeiro — desempenha um papel-chave na construção dessa autonomia. Isso começa por abandonar abordagens capacitistas que tratam o paciente autista como eternamente dependente. A escuta clínica precisa ser direcionada não apenas ao sintoma, mas também aos objetivos de vida, às potencialidades e aos desejos dessa pessoa.

É papel do profissional apoiar o desenvolvimento de habilidades funcionais e sociais, trabalhar o autoconhecimento, a regulação emocional, a comunicação e o enfrentamento das demandas da vida adulta. Isso pode incluir, por exemplo, treinos de habilidades para organização da rotina, gerenciamento de tempo, cuidado com a saúde, uso do transporte público, resolução de problemas cotidianos, e até mesmo sexualidade e relacionamento afetivo.

Além disso, o profissional deve atuar como elo entre o paciente e os sistemas de suporte social — orientando sobre políticas públicas, inclusão no trabalho, benefícios sociais, moradia assistida, grupos de pares e organizações da sociedade civil que promovem autonomia.

Outro ponto fundamental é o apoio à família. Muitas vezes, pais e cuidadores têm dificuldades emocionais para lidar com o processo de transição para a autonomia. O profissional precisa acolher essas angústias, mas também trabalhar com eles o desapego saudável, a redefinição de papéis e a importância de promover o protagonismo da pessoa autista.

Você tem perguntado a seus pacientes autistas quais são seus sonhos de vida adulta? Ou apenas tem mantido o foco em sintomas e condutas?

Ser profissional de saúde nesse contexto é também ser um agente de transformação social. É reconhecer que autonomia não é ausência de apoio — é a possibilidade de viver com suporte, mas com liberdade. É compreender que cada pequeno avanço no cotidiano, quando reconhecido e incentivado, pode representar um passo gigantesco rumo à cidadania plena.

A transição para a vida independente é um processo — e o sucesso dele depende, em grande parte, de como nós, profissionais, escolhemos nos posicionar: como limitadores de possibilidades ou como construtores de pontes.

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